terça-feira, 28 de julho de 2009

Estórias roubadas não passam de uma mentira

Vou-lhes contar uma mentira. Aviso-lhes de antemão porque essa velha senhora que vem através da história engendrando a celeuma e produzindo a desordem é tentadora. Semeia a dúvida e abala as convicções até daqueles mais céticos diante de um assunto. A mentira tem a vantagem da fundamentação argumentativa. Tanto mais detalhes e defesas você invoque para sua história, mais pessoas acreditarão nas inverdades pronunciadas. Preparem-se! Sou um ótimo contador de histórias. Vou-lhes contar uma mentira.

Sempre fui inclinado ao roubo literário. Furtar descaradamente a história de alguém e publicar como se fosse minha é excitante: sinto-me um ladrão forjado nas conversas dos sebos mais discriminados dos redutos literários; mas absolutamente nada me diferencia dos demais. Todos roubamos por ímpeto; pela necessidade soberana de se afirmar mais espertos; pelas múltiplas carências de que cada um padece.

Carências de um roubador de histórias
A vida alheia
A minha glória
E, claro, boas histórias

A história de que me apropriei está banalizada, mas ainda assim eu a quis. Era um ponto de vista pouco explorado. Os roubadores de histórias nunca a quiseram. Mas não eu, eu a desejava. Sentia que na desprezível existência de Ana havia algo de interessante para ser narrado. Foi da vida dessa prostituta que me apoderei, e serão os relatos de uma noite mundana que começo a narrar agora.

Detalhes de uma mentira deslavada
Uma rua abandonada é o espaço
A sarjeta é o palco
Os moribundos os coadjuvantes
Ana é minha protagonista
Eu, o roubador de histórias

Sentei-me a uma mesa discreta e imunda. O lixo acumulado de semanas rodopiava agora nos meus pés, causando-me uma náusea insuportável. À minha presença, os transeuntes sinalizaram entre si, para denunciar que um corpo estranho àquele enredo havia se instalado sob a jurisdição daqueles homens sem-lei. Medo? Nenhum. O prazer em furtar era a única sensação que havia se espalhado pelo meu corpo.

Apreendi serenamente a cena daquele bar. Um boteco dilapidado pelo tempo e pelos infortúnios causados por outros tipos de ladrões. O esgoto era o claro divisor de hierarquias: de um lado, encostados às ferrugens do boteco, homens de meia idade, de aparência nada convidativa, perscrutavam minha alma. Tinham as mulheres mais esnobes e mais favorecidas pelo efeito do tempo - prometi a mim mesmo não falar sobre beleza, mas essa ditadora cruel me obriga a esclarecer algo demasiado relevante: nenhuma das mulheres que estavam ali era bonita, nem mesmo minha anti-heroína. Do meu lado, estavam todos os moribundos submissos ao menor sinal dos xerifes mais à frente. Ainda sentia os olhares se cruzarem, os murmúrios sobre o intruso.

Chamei o barman com um aceno. Um homem velho veio carrancudo em minha direção. Trazia um trapo imundo, que foi jogado indiferentemente na minha mesa. Pouco sutil o comportamento desse homem, mas fez o efeito esperado. Sabia que aquela indelicadeza era sinal de que, embora cliente, ele só me serviria se quisesse. Escolhi com todo o cuidado as palavras que joguei sobre o imundo trapo à minha frente.

- O senhor pode me trazer uma dose de cana, por favor?

Ele pegou o pano e as palavras e virou-se em direção ao bar. Uma descarga ecoou de algum ponto logo atrás do boteco enferrujado, e a água servida juntou-se à fina lâmina de esgoto que escorria rua abaixo. Então ela apareceu.

Aspectos de uma meretriz moribunda
Um par de chinelos escassos
Uma blusa laranja e
Uma curta saia surrada por um
Corpo usado na sarjeta de um bar

Ela focou seus olhos castanhos em mim e sentou-se a duas mesas da minha, com um homem que começou a explorar decidido com uma das mãos um ponto acima da saia, e que eu não conseguia ver. Seu curto cabelo preto e mal cuidado balançava de acordo com o fétido vento que aspirava o odor do esgoto e formava aquela atmosfera repugnante. Ana estendeu o braço e apanhou seu copo do outro lado da mesa. Prostitutas são espertas: ela sentou-se à minha frente, embora originalmente devesse, conforme a posição do copo, estar me mostrando suas costas nuas. Ela ainda estava me olhando, logo o explorador de pernas percebeu. No instante seguinte, Ana estava de pé.

Um copo estilhaçou-se dentro do boteco, e o barman invocou nomes nada pronunciáveis para ocasiões mais distintas. Um dos homens encostado com sua prostituta no balcão do bar ainda me fitava incessantemente - eu estava começando realmente a me incomodar com o tratamento que, ele em especial, estava me dispensando. Desviei minha atenção para o velho dentro do boteco. Ele colocou minha dose num copo em que, mesmo à distância, pude identificar, havia sujeira impregnada nos reflexos quase inexistentes agora, e veio me servir.

Colocou a dose sobre a mesa e deu-me as costas como se eu fosse um leproso. Ainda de pé, Ana caminhou em minha direção. Ela era o que se via. Sem fingimentos. Em si, era uma grande mentira, e isso foi a verdade que me atraiu nela. Mesmo sem convites se sentou à minha direita. Iria roubar sua história. Ela? Ficaria com o meu dinheiro.

- Tem cigarro? - Perguntou em uma voz melodiosa.

Acenei que sim e estendi-lhe um isqueiro com um maço de cigarros ainda fechado que acabara de tirar do bolso esquerdo. Ela acendeu, tragou e bebeu minha dose num único gole. Repousou o copo na mesa e voltou a fumar o cigarro, indiferente à minha presença.

- Você é novo aqui. - Disse mais para si mesmo do que para mim. Evitava me olhar por um motivo que eu desconhecia - devia ser um método próprio: dê o desprezo e receba atenção. Eu a fitava curioso meu objeto de usurpação. Ela emanava um cheiro de perfume barato, apesar de ser agradável - qualquer alfazema seria celebrada naquela sarjeta imunda.

- E também não é de falar. - Completou instantes depois, fumando graciosamente com a atenção focada em algum ponto acima de meu ombro esquerdo.

- O que você faz aqui? - Perguntou ainda sem me olhar.

Meus motivos
Uma noite tediosa
Os lugares de sempre
Uma volta na cidade
Um lugar desconhecido
Personagens insalubres e
Uma história para roubar

- Preciso roubar. - Falei finalmente, ao que ela, pela primeira vez desde que se sentou comigo, me olhou.
- Veio ao lugar errado. - Disse terminando o cigarro e jogando junto ao lixo disperso nos meus pé. - Peça outra dose. - Acenei para o velho do bar; duas doses estavam na mesa segundos depois. Acendi um cigarro.
- Estou no lugar certo - devolvi com indiferença.
- E o que você rouba? Mulheres?
- Histórias.
Risos.
- Coleciono histórias de pessoas como você.
- Como eu? - A ironia foi sutil, mas perceptível.
- É assim que funciona? - Desviei o assunto. - Você vem, rouba as bebidas, deixa a essência do sexo e sai?
- Cada um usa as armas que tem. Você paga a bebida e cheira o sexo. Mais que isso é um pouco caro. - E desceu a mão direita pela perna, num gesto libidinoso.
- Eu só quero uma história.

Virei minha dose e senti o álcool esquentar minha garganta à medida que descia pela minha laringe. Os moribundos ao redor habituaram-se à minha presença. Murmuravam palavras quase inaudíveis entre si. Era interessante essa vida do submundo para um roubador de histórias. Esses interventores urbanos se tornariam minha fascinação nas semanas seguintes. O problema ainda era essa prostituta. Não tinha nada concreto dela. Iria perscrutar seu diário íntimo de histórias. Mas por enquanto, essa grande mentira se encerra aqui.

14 comentários:

Texticulos de moda disse...

Hey cara, parabens pelo seu blog!

Gostei do texto!

tenho um blog tb, passa lá

www.texticulosdemoda.wordpress.com

Unknown disse...

Estórias mentirosas todos temos pra contar. Pegamos um pouco do vimos, lemos, assistimos, incrementamos aqui e ali, e de repente vc se torna um grande roteirista. Grandes escritores se fazem dessa arte mesmo.
Personagens insalubres?Puxa,rsrs
vocabulário rebuscado ein?
Ótima postagem!

Abraços
Leandro Andrade
diariodeplantao.blogspot.com

NescauZin disse...

Quem era prostituta Ana? Eu gosto mais de blogs com textos fragmentados, são práticos e da vontade de ler.

www.allersonblogger.blogspot.com

Unknown disse...

parabéns
bom texto, só um pouco comprido.

iti disse...

"A vida alheia
A minha glória"
rs
http://www.maquinazero.com.br/blog/

Bárbara Moreira disse...

bom o texto. :)
as vezes uma estória roubada passa a ser repetida diversas vezes e acaba virando uma 'verdade'.

Cayo Nauan Siqueira disse...

Caramba, mais impressionado fiquei com a qualidade do texto e os termos usados nele heheheh muito bom!!

Rodrigo Marques disse...

Bom mesmo, mas também achei meio grande.

Raquel Paula disse...

Gostei da sua maneira de escrever...acho q voltarei pra acompanhar. Escreve mais sobre essa mentira.
Concordo q no fundo nos gostamos das histórias fantasiosas.

www.fenixdualista.blogspot.com

Vini e Carol disse...

Parabéns pelo texto, suas palavras são de acordo com a finalidade da história, combinou muito essa forma culta de escrita. faz bem escrever textos não verdadeiros, bons escritores escrevem textos utópicos mas que fazem nós até desconfiarmos se não é verdade. Parabéns.

Beijos, Carol

Inez disse...

O que seria da Literatura se não houvesse ladrões de histórias?

Ariston grosso que só disse...

Dinarte não é Rei nem escritor...Ele é um entrepido diabinho que escreve das entranhas sombrias dos nossos desejos...maravilhas de estórias...maravilhas Elas são!

Fillipe Morais disse...

uhauha
quase não acabo de ler
mmuuiito legal seu blog

ROdrigo disse...

parabéns pelo blog tem um excelente texto MAS achei meio longo ao chegar no meio deu vontade de parar, não pela qualidade que é excelente mas acho mais aprazivel texxtos curtos na internet