Saí de casa habitualmente no início da noite (poderia ser dia, com o calor insuportável). Puxei meu último Marlboro e acendi. Traguei e senti a fumaça serpenteando minha laringe, ao que se seguiu uma baforada de centenas de gases jogados na atmosfera.
Embora tivesse acabado de tomar banho, continuava ensopado - não de água, mas de suor - e foi daí que comecei a perder minha paciência. Você é mais do que isso, pensei. Não se descontrole por uma possível anomalia em suas gládulas sudoríporas. Continuei caminhando e cheguei à parada de ônibus. Enquanto repassava mentalmente os cálculos com o que iria gastar naquela noite (me lembrei de adicionar pelo menos uma lata de refrigerante bastante gelada) meu buzão chegou. Subi.
Estava sem vales de estudante e tirei R$ 5,oo do bolso para pagar os exorbitantes R$ 1, 75 da passagem. Então, houve uma sucessão de más vontades. O cobrador girou os olhos nas órbitas e me perguntou se eu não tinha trocado. Dei-lhe um formal não. Então, colando os vales que tinha numa espécie de papel-adesivo e ainda sem erguer os olhos para falar comigo, pediu que eu esperasse antes da catraca. Entrementes, uma senhora suspirou atrás de mim, para que eu percebesse que ela tinha dinheiro trocado e que queria passar. Com dificuldade, dei espaço para os seus mais de cem quilos passarem. Ouvi a entendiante mensagem eletrônica dizer "inteira", enquanto a mulher com excesso de fofura se desentalava da catraca. Não é meu dia, disse para mim mesmo.
Três paradas depois e havia mais duas pessoas na mesma situação que eu. Elas não pareciam se importar com o fato porque talvez, pensei eu, achavam que poderiam descer sem pagar (que falta de escrúpulos). Eram dois homens que discutiam animadamente sobre o último vexame que algum colega tinha dado. Viva a discrição e amizade, disse pra mim mesmo. Olhei para fora do ônibus e entrei em estado de semi-pânico: minha parada era a próxima.
Lancei para o cobrador um olhar inquisitivo e disse que tinha de descer na próxima parada. Ele murmurou algo parecido com "passe", e eu empurrei a maldita catraca, enquanto a entediante voz eletrônica anunciava "inteira". Esperava sinceramente que meu troco fosse dado, mas o cruel homem me ignorou, até que eu falei.
- Meu troco - disse isso com o máximo de desprezo que pude colocar na última palavra.
- Não tem trocado - disse o cobrador.
Então pegue todas essas moedas e notas e vá para o raio que o parta. Vocês são, na verdade, um bando de mentirosos que sonegam impostos e roubam o dinheiro do passageiro com um preço absurdo da passagem. Certamente você vai ficar com meu troco, considerando que você é um lacaio alienado dessa empresa. Tudo isso passou por minha cabeça, mas tudo que eu disse saiu com um sorriso de frustração.
- Então me dá o troco de vales.
Esperava receber dois, e ainda ficariam alguns centavos meus na conta da empresa. Ao invés disso, o cruel cobrador me deu apenas um, e voltou imediatamente a colar os vales que tinha no papel-adesivo, como que deixando bem claro que o maldito troco era de fato dele agora. Pedi parada e enfurescidamente desci.
O ar saturado de gordura que vinha de espetinhos de vários ambulantes entrou por minhas narinas e abriu meu apetite. Além do mais, a fumaça que se espalhava por toda a parte frontal do Natal Shopping me fez lembrar que eu não tinha mais cigarros. Prontamente eu subi e atravessei a passarela para o Via Direta. Lá tinha cigarros.
Dirigi-me para uma banca de revistas. Entrei - para minha grande felicidade lá tinha ar condicionado - e, tirando R$ 10, oo, pedi uma carteira de Marlboro. O homem que estava lá era daqueles que lembram um personagem de contos infantis. Era curiosamente engraçado pela maneira como se movimentava pela loja (passos lentos, mas firmes; como se esperando que a qualquer momento o chão se abrisse sob ele). E tinha uma voz gutural que soava irritante dentro de minha cabeça. Foi com essa voz que ele falou.
- Não tem troco.
Primeiro eu imaginei que ainda estivesse no ônibus e que aquela criatura era a personificação do cruel cobrador para contos infantis. Depois me lembrei que em dois anos morando em Natal nunca havia pegado um ônibus com ar condicionado, portanto eu não estava mais naquele inferno. Por fim, admiti pra mim mesmo que o sistema de trocos do país estava entrando numa crise sem precedentes e resolvi que, por ora, não iria colocar a culpa de mais um troco naquele homem.
Mas eu precisava colocar a culpa em alguém, e definitivamente não era em mim mesmo. Comecei então a articular uma maneira de achar um culpado direto para essa crise (duas semanas depois esse mesmo homem me negou troco, enquanto deslavadamente passava um troco de mesma quantia para duas garotas que também estavam comprando cigarros. Ele foi meu culpado).
- Me dá o que sobra de moedas em balas - disse com um suspiro, deixando bem claro que não devia ser contrariado.
- Ainda assim eu não tenho troco - aquela voz irritante se apoderou de meu pensamento e ficou ecoando dentro de minha cabeça.
Eu saí da loja antes que estourasse de raiva. Você é mais do que isso. Repeti isso pelo menos quinze vezes antes de minha crise de abstinência de nicotina se apoderar e embaralhar meus pensamentos. Respirei fundo e me lembrei de resolver parte de meu problema: precisava de uma lata de Coca-Cola, absurdamente gelada.
Cheguei a um desses quiosques no meio do shopping e pedi o bendito refrigerante. Quando o homem visualizou a nota de R$ 10, oo uma expressão nada agradável passou pelo rosto dele. Se esse filho da mãe disser que não tem troco eu perco a paciência.
- Tem R$ o,50? - Era visível no rosto dele como ele esperava que eu tivesse a tal quantia.
- Não - disse no tom mais calmo que pude reproduzir (instantes depois eu encontrei uma moeda de cinqüenta centavos em minha bolsa).
Ele se baixou e desapareceu por detrás do balcão. Comecei a imaginar que ele iria dar vários telefonemas para que conseguissem a impossível missão de destrocar os dez reais que eu tinha comigo. Mas quando ele voltou a reaparecer por detrás do balcão, trazia em uma mão uma lata de refrigerante, e na outra (mal pude acreditar) R$ 8,50. Peguei minha nota e dei pra ele, enquanto me era dado o refrigerante e o troco. Dei-lhe as costas e voltei para comprar os cigarros.
Empurrei a porta e joguei R$ 3,25 com desnecessária violência sobre o balcão de vidro. E com uma sutil ironia disse.
- Marlboro vermelho. Ah, o dinheiro é trocado.
Saí daquele lugar me sentido realizado depois que o homem me deu o cigarro. Puxei um e acendi. Minha crise de nicotina se dispersou rapidamente. Caminhei até a parada do circular enquanto pensava que nunca mais sairia de casa sem uma quantidade absurda de moedas.
Embora tivesse acabado de tomar banho, continuava ensopado - não de água, mas de suor - e foi daí que comecei a perder minha paciência. Você é mais do que isso, pensei. Não se descontrole por uma possível anomalia em suas gládulas sudoríporas. Continuei caminhando e cheguei à parada de ônibus. Enquanto repassava mentalmente os cálculos com o que iria gastar naquela noite (me lembrei de adicionar pelo menos uma lata de refrigerante bastante gelada) meu buzão chegou. Subi.
Estava sem vales de estudante e tirei R$ 5,oo do bolso para pagar os exorbitantes R$ 1, 75 da passagem. Então, houve uma sucessão de más vontades. O cobrador girou os olhos nas órbitas e me perguntou se eu não tinha trocado. Dei-lhe um formal não. Então, colando os vales que tinha numa espécie de papel-adesivo e ainda sem erguer os olhos para falar comigo, pediu que eu esperasse antes da catraca. Entrementes, uma senhora suspirou atrás de mim, para que eu percebesse que ela tinha dinheiro trocado e que queria passar. Com dificuldade, dei espaço para os seus mais de cem quilos passarem. Ouvi a entendiante mensagem eletrônica dizer "inteira", enquanto a mulher com excesso de fofura se desentalava da catraca. Não é meu dia, disse para mim mesmo.
Três paradas depois e havia mais duas pessoas na mesma situação que eu. Elas não pareciam se importar com o fato porque talvez, pensei eu, achavam que poderiam descer sem pagar (que falta de escrúpulos). Eram dois homens que discutiam animadamente sobre o último vexame que algum colega tinha dado. Viva a discrição e amizade, disse pra mim mesmo. Olhei para fora do ônibus e entrei em estado de semi-pânico: minha parada era a próxima.
Lancei para o cobrador um olhar inquisitivo e disse que tinha de descer na próxima parada. Ele murmurou algo parecido com "passe", e eu empurrei a maldita catraca, enquanto a entediante voz eletrônica anunciava "inteira". Esperava sinceramente que meu troco fosse dado, mas o cruel homem me ignorou, até que eu falei.
- Meu troco - disse isso com o máximo de desprezo que pude colocar na última palavra.
- Não tem trocado - disse o cobrador.
Então pegue todas essas moedas e notas e vá para o raio que o parta. Vocês são, na verdade, um bando de mentirosos que sonegam impostos e roubam o dinheiro do passageiro com um preço absurdo da passagem. Certamente você vai ficar com meu troco, considerando que você é um lacaio alienado dessa empresa. Tudo isso passou por minha cabeça, mas tudo que eu disse saiu com um sorriso de frustração.
- Então me dá o troco de vales.
Esperava receber dois, e ainda ficariam alguns centavos meus na conta da empresa. Ao invés disso, o cruel cobrador me deu apenas um, e voltou imediatamente a colar os vales que tinha no papel-adesivo, como que deixando bem claro que o maldito troco era de fato dele agora. Pedi parada e enfurescidamente desci.
O ar saturado de gordura que vinha de espetinhos de vários ambulantes entrou por minhas narinas e abriu meu apetite. Além do mais, a fumaça que se espalhava por toda a parte frontal do Natal Shopping me fez lembrar que eu não tinha mais cigarros. Prontamente eu subi e atravessei a passarela para o Via Direta. Lá tinha cigarros.
Dirigi-me para uma banca de revistas. Entrei - para minha grande felicidade lá tinha ar condicionado - e, tirando R$ 10, oo, pedi uma carteira de Marlboro. O homem que estava lá era daqueles que lembram um personagem de contos infantis. Era curiosamente engraçado pela maneira como se movimentava pela loja (passos lentos, mas firmes; como se esperando que a qualquer momento o chão se abrisse sob ele). E tinha uma voz gutural que soava irritante dentro de minha cabeça. Foi com essa voz que ele falou.
- Não tem troco.
Primeiro eu imaginei que ainda estivesse no ônibus e que aquela criatura era a personificação do cruel cobrador para contos infantis. Depois me lembrei que em dois anos morando em Natal nunca havia pegado um ônibus com ar condicionado, portanto eu não estava mais naquele inferno. Por fim, admiti pra mim mesmo que o sistema de trocos do país estava entrando numa crise sem precedentes e resolvi que, por ora, não iria colocar a culpa de mais um troco naquele homem.
Mas eu precisava colocar a culpa em alguém, e definitivamente não era em mim mesmo. Comecei então a articular uma maneira de achar um culpado direto para essa crise (duas semanas depois esse mesmo homem me negou troco, enquanto deslavadamente passava um troco de mesma quantia para duas garotas que também estavam comprando cigarros. Ele foi meu culpado).
- Me dá o que sobra de moedas em balas - disse com um suspiro, deixando bem claro que não devia ser contrariado.
- Ainda assim eu não tenho troco - aquela voz irritante se apoderou de meu pensamento e ficou ecoando dentro de minha cabeça.
Eu saí da loja antes que estourasse de raiva. Você é mais do que isso. Repeti isso pelo menos quinze vezes antes de minha crise de abstinência de nicotina se apoderar e embaralhar meus pensamentos. Respirei fundo e me lembrei de resolver parte de meu problema: precisava de uma lata de Coca-Cola, absurdamente gelada.
Cheguei a um desses quiosques no meio do shopping e pedi o bendito refrigerante. Quando o homem visualizou a nota de R$ 10, oo uma expressão nada agradável passou pelo rosto dele. Se esse filho da mãe disser que não tem troco eu perco a paciência.
- Tem R$ o,50? - Era visível no rosto dele como ele esperava que eu tivesse a tal quantia.
- Não - disse no tom mais calmo que pude reproduzir (instantes depois eu encontrei uma moeda de cinqüenta centavos em minha bolsa).
Ele se baixou e desapareceu por detrás do balcão. Comecei a imaginar que ele iria dar vários telefonemas para que conseguissem a impossível missão de destrocar os dez reais que eu tinha comigo. Mas quando ele voltou a reaparecer por detrás do balcão, trazia em uma mão uma lata de refrigerante, e na outra (mal pude acreditar) R$ 8,50. Peguei minha nota e dei pra ele, enquanto me era dado o refrigerante e o troco. Dei-lhe as costas e voltei para comprar os cigarros.
Empurrei a porta e joguei R$ 3,25 com desnecessária violência sobre o balcão de vidro. E com uma sutil ironia disse.
- Marlboro vermelho. Ah, o dinheiro é trocado.
Saí daquele lugar me sentido realizado depois que o homem me deu o cigarro. Puxei um e acendi. Minha crise de nicotina se dispersou rapidamente. Caminhei até a parada do circular enquanto pensava que nunca mais sairia de casa sem uma quantidade absurda de moedas.
2 comentários:
adorei! caralhu bixu, se eu fosse tão bom cronista quanto vc, organizava em um livro mesmoooooooooo!!
texto ótimo! ;)
Menino, arrasou! Otimo, otimo, otimo, fiquei ansiosa até a ultima palavra!
bjos!
Postar um comentário